"Lembrando de você (macaco observa pintura)", Gabriel von Max (c. 1900-1915)
Resenhas, posfácio, orelha: publicados em lugares diversos
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Posfácio + videoaulas para "O morro dos ventos uivantes", de Emily Brontë (editora Antofágica)

"Ninguém dorme bem aqui. Fomos viajar para o campo nessas mais de quatrocentas páginas e nenhum de nós imaginou a possibilidade de parar, aproveitar a vista e descansar. O romance começa com a pior noite da vida de Lockwood, assombrado por um fantasma, em um casarão no meio do nada. E termina com o mesmo Lockwood, urbano e descrente, dizendo a si mesmo que, a despeito do que viu e ouviu, as pessoas descansam em paz depois de mortas. Ele se dá por satisfeito com uma conclusão como esta. Ele, e mais ninguém. Entre a insônia da abertura e a morte sem repouso do final, vemos uma sequência de noites ansiosas, adoecidas e assombradas, que acometem os personagens deste livro, vivos ou mortos. Temos Cathy destruindo os próprios travesseiros em um delírio enciclopédico de nomes de aves; ou Hindley, armado, de olho na fechadura de Heathcliff, fingindo ter coragem de assassiná-lo; Linton paralisado de medo do próprio pai, sem conseguir pregar os olhos; Heathcliff
agonizando, insone, até que, finalmente, morre — de olhos abertos. Hareton se fixa ao seu lado e se recusa a deitar.


Conta-se que, uma vez, Branwell, o irmão de Emily Brontë — o único homem, único artista medíocre e único alcóolatra dos filhos dessa família —, voltou para casa tão fora de si que pôs fogo na própria cama. E, com o colchão ardendo, sequer encontrou sobriedade e força suficientes para se levantar. Emily Brontë correu da cozinha até o quarto com um jarro de água nas mãos.

O crítico Robert Morss Lovett a descreve como "o burro de carga" do lar, sempre de prontidão para resolver qualquer tarefa. A família Brontë era pobre; o pai, Patrick, trabalhava como cura da paróquia local. A casa onde viviam, numa cidade de 5 mil habitantes em Yorkshire, era da igreja e, no quintal, havia um pequeno cemitério. Os filhos eram, a princípio, seis: Maria, Elizabeth, Charlotte, Branwell, Emily e Anne. Mas Maria e Elizabeth morreram aos 11 e 10 anos de idade, respectivamente, de uma tuberculose que contraíram na
escola úmida e omissa onde as cinco meninas estudaram. Pouco antes, a mãe havia morrido de câncer, depois de parir seis filhos em seis anos. [...]"
Livro disponível aqui.
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Orelha para "A planta do mundo", de Stefano Mancuso (editora UBU)

"Humanos são como bananas: emitem radioatividade. De leve. Humanos são como bananeiras: nenhuma das duas espécies pode ser classificada como árvore. Com este livro, ficamos sabendo que árvores são muito mais do que pensávamos: elas conversam pelas raízes, por baixo do solo, com a assistência das vidas miúdas; são seres que um dia já serviram de símbolo de revoluções, segredo a céu aberto, comunicando uma mensagem para os entendidos; são elas que podem traduzir em seus corpos taludos as mudanças que ocorrem no regime das chuvas e na superfície do Sol. O que são as árvores? São as criaturas que doaram a própria vida para que você pudesse ter este objeto em mãos. Um minuto de silêncio pelos eucaliptos anônimos transformados em papel.

O mundo é das plantas, esses seres silenciosos, companhia discreta: representam
85% da biomassa do planeta. Ser bicho é exceção: todas as espécies somadas dão apenas 0,3% do total. Neste livro de crônicas botânicas, vemos as vidas vegetais assumirem o centro das histórias. Lemos sobre o futuro verde das cidades grandes e os abetos do século XVIII que cresceram em condições perfeitas para virarem violinos estradivários; ou um capítulo longo e divertido sobre as bananas, sua inaptidão psicotrópica e o coeficiente de escorregamento de suas cascas. Nessas crônicas, árvores dão a chave para a solução de um crime e criam vínculos entre cidadezinhas do interior e a ida do homem à Lua. Stefano Mancuso é alguém que gosta de plantas. Mas gosta de gente também. Em cada um desses textos, os seres humanos são vistos zanzando em torno das plantas. Elas são o centro de convergência para pessoas interessantes: um senhor num sebo, um japonês num boteco, uma professora que envia um e-mail à Nasa. Este é, no fim das contas, um livro sobre a criatividade – a das plantas, a nossa – diante do fim de mundo em que estamos e provocamos.

Mancuso fundou, dentro da botânica, o ramo da neurobiologia vegetal, para que se pudesse pensar a sério em como pensam as plantas. Não que elas tenham cérebros – ter a cabeça pesada é uma prerrogativa nossa. Entre raiz e folha, no entanto, correm soluções que ainda não nos ocorreram, e Mancuso as traduz para nós. Escreve com o otimismo dos desconfiados que conseguiram enxergar uma saída."
Livro disponível aqui.
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Resenha de "Nunca acontece nada na minha rua", de Ellen Raskin, para Quatro cinco um

"O livro não diz, mas desconfio que Luís Rodolfo seja uma criança que gosta de ler. Por que outro motivo ele estaria sempre sozinho, melancólico, alheio ao que acontece ao seu redor e — o mais importante — por que se entregaria tão facilmente ao próprio universo mental? Sentado na calçada, a cabeça pesando sobre os ombros, ele se ocupa unicamente com o ato de fantasiar. Luís Rodolfo não acha graça nas outras crianças, como não se interessa pelo gato laranja que mia ao seu lado, nem pela briga da vizinha com o carteiro na soleira da porta. Só quer saber de monstros, astronautas, espiões, leões, tigres e piratas. Nem ao menos percebe quando uma árvore às suas costas cresce e dá frutos, quando um ladrão é perseguido (e pego) pela polícia, quando uma bruxa aparece atrás de uma janela e depois de outra, e outra; quando um paraquedista pousa na sua frente, quando tudo dá errado, quando tudo dá mais errado ainda, quando tudo dá certo, quando a chuva cai."
Leia a continuação aqui.​​​​​​​
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Homenagem a Philip Roth após sua morte, para Quatro cinco um

Os personagens que Philip Roth inventou são quase invariavelmente uns sem amigos. Seguem suas vidas sozinhos, pensando e pensando e pensando. É como se estivessem sempre conversando consigo mesmos e, de tanto darem ouvidos às suas ideias, acabam se convencendo de que o ruído que suas mentes produz coincide, de fato, com os sons do mundo. Os romances podem ser longos, pouco importa: esses homens continuam ensimesmados até o momento em que o mundo desaba — num romance de Philip Roth, ele está sempre prestes a desabar — e só então eles param e olham em volta e se perguntam como foi possível uma coisa dessas acontecer, e logo agora, e logo com eles. No mais, quando estão diante de outras pessoas, muito rapidamente param de ouvir o que elas dizem; veem uma boca se mexendo, mas só isso. O próprio cinema mental lhes basta.  
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Resenha de "Viagem sentimental", de Viktor Chklóvski, para Quatro cinco um

“Só há duas maneiras de se viver: ou você escreve para si mesmo enquanto ganha dinheiro com alguma outra ocupação, ou se tranca em casa e contempla o sentido da existência. Não há uma terceira via. Eu escolhi a terceira via.” É verdade — em que outro lugar Viktor Chklóvski teria vivido, senão numa terceira via, a inexistente? 
O mundo em que ele nasceu foi a Rússia do final do século 19, a Rússia de Tolstói e dos czares. Viveu a Primeira Guerra Mundial e a Revolução de 1917. Reinventou-se muitas vezes e morreu em 1984, aos 91 anos, num mundo muito diferente daquele onde tinha nascido — e, projetando-se ainda além, disse que amava o futuro, e que era sempre preciso amar o futuro.
Leia a continuação aqui.
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Resenha de "Viagem ao Volga", de Ibn Fadlan

Há livros que fazem o mundo parecer maior. O horizonte se alarga quando lemos histórias de aventuras, relatos de viagens a lugares distantes, biografias de pessoas curiosas. Não são muitas as obras que provocam esse efeito — mas as que o fazem parecem oferecer para o leitor adulto o mais próximo que se pode ter da experiência de ler livros na infância.
"Viagem ao Volga", escrito em árabe por um homem que viveu há mais de mil anos, pertence a essa categoria: a obra aumenta o mundo ao nosso redor: dá mais esperança às nossas experiências.
Leia a continuação aqui.

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