A primeira resposta que me vem à mente é: eu não sei.
A segunda resposta que me vem à mente é uma lista de presença:
CLÁSSICOS — PRIMEIRA CHAMADA
Homero ✓
Confúcio ✓
Virgílio ✓
Dante ✓
Shakespeare ✓
Cervantes ✓
Machado de Assis ✓
Emily Dickinson ✓
Milton ✓
Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé (os três porquinhos da poesia francesa) ✓
Keats, Byron, Shelley (os três porquinhos da poesia inglesa) ✓
Wordsworth, Blake, Coleridge (vale o mesmo do item anterior) ✓
Tolstói e Dostoievski (os dois porcóvskis) ✓
Balzac, Flaubert ✓
Euclides da Cunha ✓
Kafka (esse era doido) ✓
Emily Brontë, Charlotte Brontë ✓
Guimarães Rosa ✓
Melville ✓
Sei Shonagon (essa era doida) ✓
T.S. Eliot (esse era CHATO) ✓
George Eliot (uma gênia; não confundir com o Eliot anterior) ✓
Dr. Johnson ✓
Sterne ✓
Etc. etc.
Mas essa chamada não responde à pergunta. Ela é só uma comprovação sem-vergonha de que eu sou mesmo formada em Letras (diploma: ✓), e me ajudou a ganhar um pouco de tempo enquanto tentava pensar numa resposta.
Eu gosto muito dos clássicos. Vou tentar explicar por quê. Talvez tenha algo a ver com o fato de que a terceira resposta que me vem à mente quando olho para essa pergunta é que, apesar de eu não saber respondê-la, sei que tem gente que sabe. Eu tenho vontade de olhar para alguns desses autores e perguntar para eles o que pensam sobre o tema — como que eles definiriam o clássico. (T.S. Eliot, “O que é um clássico?”: “Se quisermos descrever, com uma só palavra, tudo o que está contido no termo ‘um clássico’, essa palavra seria maturidade”. Eu avisei.) A coisa toda é: clássicos são como oráculos. Eles têm resposta para tudo. Têm a resposta e te entregam, sem miséria. Eu leio esses autores porque não gosto de encarar a vida sozinha. Gosto da companhia. E gosto ainda mais de pensar que esses autores (e a minha lista aqui é bem curta, poderia ser maior, mas acabou saindo com o tamanho exato da minha paciência) foram lidos por muita gente, muito antes de eu existir. E esses livros foram bons amigos para seus leitores, deram boas respostas e fizeram companhia a muitas pessoas que eu nunca vou saber quem são. Só que a presença dessas pessoas anônimas está lá, de algum jeito, trazendo esses livros até nós. Os clássicos foram passados de mão em mão e chegam até aqui amaciados pela convivência. São coisas quentinhas.
Muitos outros aspectos poderiam ser mencionados. Tem todo um argumento político que poderia ser construído, pró e contra a ideia de clássicos, de cânone, de velhos homens europeus mortos há anos nos dizendo o que fazer. Mas vou deixar isso para os outros, que sabem construir esses argumentos muito melhor do que eu. Sou uma defensora da divisão de tarefas.
Pedi um lanche “clássico” na padaria em frente de casa (pão-queijo-pão) e ele levou dois minutos e meio para vir. Eu contei. O tempo passa... quem tem fome tem pressa. Estou divagando.
Os clássicos. Sim, muito bem. Vamos lá. Mas por onde começar?
Existe uma história sobre o Chico Buarque que talvez seja verdade, talvez não.
Me contaram uma vez:
Num determinado momento de sua carreira, depois de já ter feito samba, bolero, marchinha, milonga, palíndromo, bricabraque, bossa-nova, canção brega, beleza infinita, poema ilimitado, romance, peça, controvérsia, sucesso de todas as formas, Chico Buarque percebeu que tinha uma coisa que ainda faltava. Uma só. Ele queria fazer um lanche. Ou melhor, queria ser um lanche. Aspirava a essa última consagração: que seu nome fosse atrelado a uma receita de lanche para sempre, em todo lugar onde houvesse padaria. Ele queria chegar lá — ao lado dos Baurus, Americanos, Mistos e Queijos Quentes. Chapados. Todos eles.
A técnica era boa: sentava nos lugares e quando vinham retirar seu pedido, dizia que queria “um holandês”. Para a cara de “?” do atendente, ele se explicava: “vai pão assim, queijo assim, tomate assim...”. Como se fosse algo natural, queria que seu lanche fosse se infiltrando nos cardápios e nas chapas do Brasil.
Não colou.
Mas a ideia, eu acho, era linda: o clássico se estabeleceria naturalmente, sem que as pessoas percebessem o que ele estava armando... o tempo passaria (estou sim respondendo à pergunta, viram?) e um dia o lanche estaria lá, um fato estabelecido. Clássico. Até se disseminar tanto que perderia a relação com seu criador, e um dia as pessoas duvidariam se de fato houve uma pessoa por trás da invenção da obra. Se foi um bardo cego ou o quê. Ou se aquela não seria uma manifestação de uma arte popular, filha única de alguma tradição anônima, perdida e singela, dessas que põem a gente a sonhar...
Não sei se o mesmo se aplica para os clássicos da literatura. Talvez eu não tenha respondido à pergunta.
Acho que o público faz toda a diferença. Um clássico precisa ser lido. Ou comido. Caso contrário, nem é um clássico, nem mata a fome.
Livros que nunca são nem serão lidos são uma coisa triste demais, um amontoado de árvores mortas.
Lanches que não são comidos vão pro lixo. Outra coisa triste demais.
Gosto de pensar que não, os critérios são específicos para cada forma de arte. E talvez ainda mais: talvez sejam específicos para cada obra de arte. Cada uma te diz quais são os critérios dela, e você tem que ficar atento para captá-los. A obra pede que você seja esperto, cada uma à sua própria maneira.
Você olha para um livro e tenta ver nele o que é mais livroso, o que foi feito ali e que só poderia ter sido feito ali, que não ficaria melhor em nenhum outro formato. Nem com queijo em cima, nem dentro de um pão.
Acho que a arte nos ensina isso: a gostar de especificidades.
Acho que sim. Talvez a gente esteja olhando para o lugar errado, e no futuro as pessoas percebam que havia muitas formas de arte novas surgindo neste momento, e atingindo públicos imensos — artes de Twitter, artes do desenho animado (aposto minhas fichas no Bob Esponja), artes de batalhas de sticker de WhatsApp. Mas isso vai depender de como as pessoas do futuro olharão para o que as pessoas de hoje estão fazendo. Acho que está tudo mudando e não sei dizer como vai ser daqui pra frente.
Mas eu mal posso esperar. Quero muito viver no futuro, num mundo cheio de eletrodomésticos cromados.
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