Isso daqui é tipo um blog
Um texto sobre uma coisa que eu queria muito, 17 de abril de 2021
Era uma mulher, com um corpo e, um dia, ao digitar com pressa no computador, sua mão direita travou. Foi tudo muito rápido. Primeiro, a mão secou. Chegou a ficar quebradiça. Depois, seu cotovelo se retraiu, puxado para junto das costelas. A mão então recebeu um influxo novo de sangue e inflou, preenchendo-se numa outra forma. Arredondada agora, aquela mão direita tinha virado uma pata. Acolhida no centro do peito, pôs-se a descansar em meia-concha. A mão esquerda quis seguir com as tarefas. Voltou a trabalhar, mas seu ritmo era invariavelmente lento. A digitação pesava, cansava. Quis abrir a geladeira, e a mão-pata sequer sabia como ou nem mesmo tentava ajudar. Cozinhar tornou-se um fardo: a mão que segurava a faca não conseguia segurar o legume, e a tábua escorregava pela mesa. As panelas eram pesadas demais para a mão esquerda sozinha. A pata direita recolhida não se importava – era como se cochilasse o tempo todo, solenemente indisposta. A mão esquerda penava. Com o tempo, todos os trabalhos atrasaram e acumularam. 
Veio a descoberta de que banhos, no entanto, eram bons: a mão-pata amolecia, tornava-se mansa. Sob a água quente, ficava quase gentil, e se deixava admirar. Os banhos, então, foram se tornando cada vez mais frequentes, quatro, cinco ao dia. 
As refeições se simplificaram, a louça utilizada reduziu-se ao mínimo, quase nada, porque, uma vez suja, era quase impossível de lavar. Os móveis foram tirados do caminho, abrindo espaço. A mão-pata dormia. Às vezes acontecia de, muito rápido, um pássaro voar pela janela, e subia naquela pata um desejo de ir ao chão, naquele chão que nunca mais foi varrido, onde todas as poeiras vieram se acomodar, subia-lhe o desejo urgente de tocar o chão e, ao tocá-lo, correr. 
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MINÚSCULA AUTOBIOGRAFIA A PARTIR DO VIOLÃO
02 de abril 2021
Faz uma semana que eu ganhei meu primeiro violão. Foi a Carmen que me trouxe, junto com toda a mudança da vinda dela para ocupar a casa ao lado da minha. Agora estão unidos meu pai, minha mãe, minha irmã e meu cunhado no mutirão para me ensinar a tocar. Na minha família, todo mundo é músico. Só eu sou triste. Devo lembrar do som do violão quando o meu mundo ainda era uma geleia acústica, e minha mãe estudava, dedilhando notas perto da barriga. 
Quando moramos nos Estados Unidos, como imigrantes de terceira classe, vivíamos com um homem inglês que se comportava exatamente igual ao rabanete novo quando você o arranca do solo, sabe? Você segura nas folhagens com um punho fechado, e tem que agarrar firme, porque aquela carinha redonda e vermelhaca abre o berreiro no instante em que você encosta nela para retirá-la do sono da terra. Os olhinhos espremidos, a boca abertona, o chororô, a baba, o bicho todo tremendo. O fim do turno da noite no restaurante chinês era a parte alegre dessa história: o retorno da mãe à casa, com as sacolas surrupiadas, trazendo para nós o resto do pato de pequim que algum cliente pediu e mal encostou.
Depois a cidadezinha do interior de São Paulo… quente, horrorosa. Aquilo não era uma cidade, era um estado de constipação mental. Eu não podia jamais aprender a tocar violão lá: tinha muito com o que me ocupar. Eu precisava todos os dias acordar e chacoalhar as almofadas do sofá para ver se encontrava alguma moedinha. Trazer meu colchão de volta da varanda para dentro da casa, para à noite levá-lo fora de novo e tentar alcançar algum descanso naquele calorão. O sono vinha escasso e esticado, sempre prestes a estourar. Com as moedas achadas, eu poderia pegar o ônibus. Ou eu ou a minha irmã: a que ficasse de fora teria que pegar carona na estrada com o caminhão. As roupas secavam no forno entreaberto. Os caramujos predadores se achegavam pelo muro do quintal. 
Quanto ao meu pai, ele não estava. Só apareceu mais tarde nesta história. Os violões alinhados. Nem sonha em encostar neles com tuas patinhas imundas! E eu me voltava para o meu canto, relinchando. No capim ao lado, a vaca azeda pastava.
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23 de outubro de 2020
Moro agora numa casa no alto de uma montanha. Se você vier me visitar e olhar de longe, vai perceber que ela parece uma casquinha no alto de um imenso pão. Estamos nessa casquinha, venha ver. Quando tem tempestade à noite, tenho medo de que o vento faça a casa inteira rodopiar. Mas por enquanto permanecemos enraizados e dormimos bem. Somos seres sonolentos numa casinha de madeira e pedra no topo da nossa montanha macia. 
Em cima do nosso quarto, venha ver, tem um mezanino. Ele é quase minúsculo, uma fatia de madeira em forma de península, saindo do eixo a partir de onde cresce o telhado. A gente só cabe nele deitados, e é a melhor parte disso tudo. Nossos livros estão aqui, e nossa gata, um cobertor, e esse simpático tapetinho que cobre imperfeitamente as tábuas de madeira que servem de chão. Entre essas tábuas há minhoquinhas de frestas de luz que nos iluminam de baixo acima, e seria bom me revirar como um cachorro, rabo para o alto, e grudar meu olho nessas frestas, espionar os segredos de como minha casa se comporta quando ela pensa que está livre de mim. Eu grudaria meu focinho, meus olhinhos, um de cada vez, para examinar. O que eu vejo? Minha cama, com as cobertas felpudas e travesseiros mudos. Vejo também o maior pecado de todos, que nós às vezes cometemos: é noite, a janela está aberta. Entram por aqui muitos besourões. Meu rabo balança. Vamos matá-los depois. Latimos para o alto.
Estou deitada no mezanino, olhando para o teto, os livros todos ao meu lado. Mas agora não me ocupo deles. Estou olhando para o teto, suas tábuas de madeira, os desenhos das tábuas: dois olhos vesgos, um pardal, dois carros se beijando. Ficar aqui tem algo de viver dentro de um sonho que devo ter tido quando tinha por volta de sete ou oito anos. Sou a adulta sonhada por uma criança: vivo numa casquinha no alto de um pão, com flores no quintal, um mezanino para me esconder dos dias, uma gata-rocambole aos meus pés, e um rosto que é decididamente meu. Cada dia que passa, ele fica mais mole. E, como era de se esperar, eu sei que sou amada, porque todo adulto é amado: é o mínimo com o qual se poderia contar, depois de ter sobrevivido à escola.
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2 de setembro, um texto que não se parece muito com as coisas que costumo publicar
Por que será que eu tenho tantos desejos, tantos desejos opostos que vão me convencendo, alternadamente, que são eles a coisa mais importante da minha vida? Um desejo vem — e aí eu tenho que segui-lo, é ele que vai me resolver! É ele o que eu queria, era isso o que faltava! E depois…
Uma vontade sempre, sempre, de sair do mundo. Que é a mesma coisa que essa vontade imensa de ir ao mundo. Porque qualquer coisa que não seja este mundo aqui é o que me chama: algo que seja menos banal do que isso, menos superficial do que esses dias feitos de papéis. Então eu alterno os desejos: o de ir viver num país bem longe daqui, aprender a falar outra língua, aprender outros costumes, não conhecer ninguém! Ou ir viver no campo, ver o sol nascer e se pôr todos os dias, cozinhar e sentir os cheiros de grama, de chuva, de comida, de animais que rondam a região, sentir todos esses cheiros percorrerem sem urgência o interior da casa. E eu me vejo lá: concentrada com meus afazeres, quaisquer que eles sejam, porque já não me importo mais com a hierarquia das tarefas. Tudo é bom: lavar o chão de pedra ou trabalhar à distância para a cidade grande, ou ler um livro e entrar em exaustão cerebral profunda. Ou sair para caminhar e sentir o ar em volta e sentir-me bem com a minha própria presença e, além disso, não pensar demais na minha própria presença.
As duas coisas me chamam. Eu agora, do outro lado, me vejo num país novo, num apartamento pequeno e alugado, mas do qual me orgulho, porque é o primeiro fundamento sólido e talvez único que posso ter nesse novo lugar, onde ninguém me conhece e, mais do que isso, onde tendem a desconfiar de mim. Meus gestos parecem dúbios e, de tanto ser vista assim, eu duvido cada vez mais de mim mesma. Pergunto-me quem sou e a que propósito existo. Não sei se tenho qualidades, não sei se tenho alguma coisa para chamar de minha, ou se tudo aquilo que eu considerava ser meu era fruto das circunstâncias, fruto de um contexto anterior que me definia. E agora, estou aqui e não sei de nada, de ninguém, e tenho que me haver comigo. Calço minhas botas; calço as botas da minha autoconfiança e me sinto esperta, pronta para descobrir o que pode ser isso, o que podem ser os dias e a aventura para uma pessoa como eu, uma pessoa que não tem nada além de coragem e vida. Olho para as minhas botinhas e demoro para sair de casa porque quero aproveitar para sentir esse tempo alargar, porque sei que vou querer lembrar dele depois, lembrar de como era a sensação de ainda não saber como tudo iria se desenrolar.
Qualquer coisa, qualquer coisa… minhas tardes se repetem, e acabo me esquecendo de mim, mesmo estando tão bem aparada nesse acolchoado de existência. Às vezes, me deprimo um pouquinho. Normalmente não percebo. É algo do qual me dou conta só um pouco depois. E aí vou medindo o que aconteceu: era essa fatia do meu cérebro que eu tinha desligado, era esta parte de mim mesma que eu tinha colocado para dormir, que saudade dela. Vou me recuperando aos poucos, parte por parte. Lembro: ah, sim, é disso que eu gosto. É nisto que sou boa. Tenho verdadeiramente uma vocação para esta coisa aqui. E, à medida que vou me lembrando de mim, o que acontece, na verdade, é que vou acordando minhas fantasias, meus desejos. Lembrar dos meus gostos, lembrar de quais são, afinal, as minhas qualidades, as que são unicamente minhas, e não aquelas que fui aprendendo a pegar das pessoas ao meu redor, as pessoas que eu amo e que admiro e com quem eu gostaria de ser pelo menos um pouco mais parecida. Só um pouquinho. Como uma planta trepadeira que vai subindo nos galhos de uma árvore e acaba se confundindo com ela, e confundindo aos outros também, de que aquelas folhas da árvore são, na realidade, folhas dela. Ninguém percebeu o engodo. Não sei se engodo é a melhor palavra: talvez seja carinho. Enfim: quando vou me lembrando de mim, o que acende aqui são todos esses desejos adormecidos, desejos que, agora que eu percebo, lembram a mim quem eu sou e atiçam a vontade de ser totalmente outra coisa. Em qualquer outro lugar que não este.
Eu me entedio tanto.
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10 de agosto, mais ou menos cinco meses de quarentena
Imagino nós dois vivendo para sempre assim, numa casa no campo, sem preocupação com dinheiro ou tédio. Ter uma companhia constante e humana é algo que me faz produzir felicidades. Fico feliz. A pessoa que eu sou do lado de fora — essa pessoa que só existe quando precisa ser convocada para fazer companhia a alguém — alimenta de um jeito solar a pessoa noturna que eu sou do lado de dentro. Não saberia dizer se uma é mais verdadeira que a outra. As duas existem e são reais. Mas a Sofia de dentro, a que vive no fundo do armário de mim mesma, ela tem alguns vícios e algum cheiro de guardada e precisa da Sofia de fora para poder se arejar. Do mesmo jeito, essa Sofia de fora precisa da Sofia de dentro para continuar sendo um ser vivo. A Sofia de dentro é o pulmão da Sofia de fora, é seu fígado, estômago — a Sofia de dentro são todas as partes escondidas e escuras, que ninguém nunca viu, mas que dão sustento e possibilidade de vida à Sofia visível. Então é isso: quando estou com alguém, a Sofia de fora existe. Quando estou sozinha, não. E isso é triste demais, ficar só com os órgãos internos e nenhuma cara. É ruim para todos os envolvidos. 

É por isso que, sozinha, às vezes pareço tão desconectada dos meus próprios desejos — o que importam os desejos que existem quando estamos sozinhos? Ninguém é propriamente si mesmo quando está sozinho. Sozinho, todo mundo só tem ideias e gestos conformistas. Nós só nos tornamos pessoas com contorno e recheio quando estamos em contato. 
Lembrança para o dia de hoje: 5 coisas
Uma pequena tristezinha.
Um médio tédio.
Um bem-estar de tamanho grande.
Uma imensa vontadona.
Minha cara do tamanho da lua.
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28 de maio de 2020
Este é um texto um pouco derretido sobre margarina e caligrafia chinesa em tempos de guerra
A peste bovina é considerada a única doença que conseguimos erradicar por completo do mundo. Até bem pouco tempo atrás, existiam duas doenças nessa categoria — a peste bovina fazia par com a varíola. A varíola pode ser considerado o caso único na categoria de doenças ex-erradicadas do mundo. 
Em 1869, na Europa, quase duzentos anos antes da erradicação da peste bovina por vacina, ela teve um pico epidêmico, matando os animais numa letalidade próxima a 100%. Com a população de vacas minguando, o imperador Napoleão III criou, então, um concurso para premiar a pessoa que conseguisse inventar um substituto razoável para a manteiga. A história se passa na França, afinal.
Um químico chamado Hippolyte Mège-Mouriès (que já tinha conquistado certo prestígio depois de desenvolver, em primeiro lugar, um remédio para sífilis com menos efeitos colaterais e, em seguida, um método de aumentar a produção de pães com menos farinha) foi ao laboratório e jogou no caldeirão um tanto de gordura bovina, leite, e o úbere de uma vaca. Deixou ferver até coalhar. Separou um óleo clarificado e salgou a gosto.
Inicialmente chamado de “óleo-margarina”, foi depois encurtado para “margarina”, porque “margarites" é o nome para “pérola" em grego: a margarina brilhava. 
Começou aí.
***
Durante a Primeira Guerra Mundial, ou seja, cerca de cinquenta anos depois da invenção da margarina, quando Rudyard Kipling perdeu o filho em combate (ele mesmo tinha insistido para que o filho fosse à guerra), escreveu um poema lamentando, no qual se pergunta: mas de que adiantaria você, meu filho, continuar vivo? Para voltar para um país onde toda manteiga é margarina?
***
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, mais de setenta anos depois do começo desta história, George Orwell escreveu que o que mais ficaria marcado na sua memória não seriam as mortes, a miséria — seria o gosto da margarina. “A guerra continua nos afetando — em nossos estômagos.”
Um pouco antes disso, na Alemanha, enquanto a guerra ainda avançava, a comida do dia a dia se via sendo trocada por ingredientes substitutivos, que em seguida eram substituídos por outros, e então outros e outros. Até chegarem num ponto em que: 
No lugar do café: cascas de noz com alcatrão;
Em vez de ovos: batatas com maizena;
Para forjar pimenta do reino: cinzas de carvão;
Em vez de carne: prefiro não dizer;
Para extrair proteína animal houve uma tentativa feita com asas de libélulas;
Quando até a margarina acabou, recorreram a uma mistura de amido de batata com bicarbonato de sódio.
***
Na família da minha mãe, gostam de contar a história de que foi um antepassado nosso que convenceu os europeus a comerem batatas. Ele era um botânico da corte da Maria Antonieta e se chamava Antoine Parmentier — foi um homem que existiu, isso sim é verdade. Só não sei dizer o quão próximo ele é de nós. Minha avó se chamava Maria José Parmentier. Uma das primeiras lembranças que tenho dela é de quando veio nos visitar em São Paulo e quis assar sonhos para mim e pra minha irmã. Colocou conhaque demais na mistura e os sonhos ficaram alcoólicos. Que delírio.
***
Agora este texto muda um pouco de direção. A ideia na superfície continua a mesma, a intenção é que é outra. Recheei as minhas descobertas deste texto com outra visão sobre o mundo. Eu estava mais triste na primeira parte.
Pouco tempo atrás, minha mãe me deu um livro sobre caligrafia chinesa, um livro que tinha sido dela. Foi escrito por um chinês que vivia na Inglaterra, e que demorou até conseguir encontrar uma editora que topasse bancar a publicação. Saiu finalmente em 1938, no finalzinho do ano — o pior momento possível. A Segunda Guerra veio logo depois. O livro ficou parado nas estantes, e ninguém pôde saber de como ele contava, num tom tão bonito e calmo, e claro e novo, que a caligrafia é um exercício de algo que eu chamaria de perfeição: o calígrafo trabalha — o calígrafo se trabalha — para que cada gesto seu seja a tradução perfeita do que ele tem dentro de si. O trabalho para que isso seja possível é o trabalho de uma vida, infinito e indefinível. 
Isso foi uma das coisas que permaneceram secretas enquanto ninguém comprava o livro, esquecido nas estantes das livrarias esperando a guerra terminar de acontecer lá fora.
Outro segredo que ficou contido no livro: a principal obra da caligrafia chinesa, exemplo antigo que todos os calígrafos ao longo dos séculos admiram e tentam imitar, só existe porque existem cópias dela. A obra fundante está perdida. Foi perdida há muito, muito tempo. O que faz alguns pesquisadores, sobretudo no ocidente, desconfiarem que talvez nunca tenha existido — e só o que importa são suas cópias, cópias da cópia da cópia, substitutos de algo que ninguém nunca viu. Mas não importa a coisa. O que importa mesmo é sempre outra coisa. 
(No século 16, um erudito da dinastia Ming escreveu um texto comentando a quantidade de obras literárias que exaltavam a beleza de determinados jardins, muitos dos quais já tinham desaparecido, e que continuavam existindo apenas no meio literário. Nesse ensaio, a coisa mudava de dimensão: o autor da dinastia Ming elogia a beleza de um jardim chamado Wuyou, literalmente, “Jardim inexistente”. Por que razão se deseja — ele se pergunta — um jardim de verdade? Não se pode simplesmente pular essa etapa? Qual a diferença, afinal, entre um jardim famoso que não existe mais e um jardim que nunca chegou a existir, se, no fim das contas, os dois permanecem apenas através de seus substitutos literários?)
Estou contando para vocês. O livro sobre caligrafia continuou pegando poeira. Até que, em 1943, chegaram as tropas de soldados norte-americanos e, quando veio dezembro — nenhuma das fábricas europeias tinha tido condições de preparar brinquedos de Natal — ele vendeu, vendeu muito. Os soldados fizeram o livro ter oito reimpressões seguidas; compravam aos montes para enviar para suas famílias nos Estados Unidos.
O autor desse livro — ele escreveu muitos outros também — ficou famoso na China porque encontrou a tradução considerada mais bonita para “Coca Cola”: 可口可樂 (pronuncia-se Kekou Kele). O chinês é uma língua tão antiga que tudo nela tem significado. Não existe sílaba que não tenha sentido — por isso, quando os nomes ocidentais são transpostos para o chinês, é preciso, em primeiro lugar, fazer uma aproximação pelo som, encontrando algo que se assemelhe à pronúncia na língua de origem. Um substituto para o nome, algo assim. Mas a questão é que: também se deve ter em mente que tudo tem sentido em chinês, então é preciso se perguntar que sentidos — e não apenas que sons — essa aproximação vai criar: 可口可樂 significa, segundo a tradução que vi para o inglês, “delicious delight”. Este é um frontispício de um dos livros desse autor, a pintura é dele também:​​​​​​​
***
Um sinólogo belga, de quem eu gosto muito, comenta no final de um texto a seguinte história sobre um monastério chinês, onde os monges eram reconhecidos por seus hábitos austeros. Seguiam as regras mais rígidas impostas pela tradição dos indianos. Neste monastério na China, em vez de uma jantar, só era permitido aos monges uma tigela de chá ao entardecer. Os estrangeiros se impressionavam com a seriedade das suas práticas. Mas, se tivessem curiosidade o suficiente para ir olhar de perto, perceberiam que, dentro das tigelas dos monges, havia um mingau de arroz encorpado, tão nutritivo quanto a comida servida em qualquer outro lugar. Por respeito à tradição, os monges seguiam se referindo àquilo como “chá”. O sinólogo belga comenta: “Eu me pergunto se, em alguma medida, a tradição chinesa não seria, ela mesma, uma ‘tigela de chá’, que, inscrita em um nome antigo, louvável e constante, pode, na verdade, abarcar qualquer sorte de conteúdo — abarcar tudo, com exceção do chá. Sua permanência é, acima de tudo, uma permanência dos nomes, e contém a natureza permanentemente fluida e mutável dos seus verdadeiros conteúdos”. Esse sinólogo assina seus trabalhos como “Simon Leys”. Nome que ele escolheu para si mesmo quando adulto, roubado de um personagem de um de seus livros preferidos da infância.
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10 de maio de 2020

Durante anos eu olhava o Climatempo várias vezes ao dia e pensava na temperatura das coisas. Às vezes no outono, um só dia chega a ter uma variação de mais de 20 graus. São dias extremos. Eu cresci numa cidade que tinha muitas cavernas e, apesar de não gostar de permanecer dentro delas, eu gostava de saber de cor — de cor mesmo, no fundo do coração e na ponta da língua — o que nenhum adulto morno sabia: a diferença entre estalactites e estalagmites. Apontava para cada um deles e dava a legenda. E gostava de pensar no esforço e no tempo tão exagerado que tinha levado para que se formassem, de gota em gota. Mas toda vez que eu entrava numa caverna, queria sair de lá o mais rápido possível para poder voltar para casa e ficar sozinha pensando nelas. Ficava revisitando-as na memória, recuperando e inventando a sensação extrema de ter passado por uma iniciação em algum mistério. 
Uma vez fizemos um passeio de barco por dentro de um rio que corria numa das cavernas da região. O guia parou o barco num lugar bem escuro e frio, e disse que, naquele ponto, o teto da caverna era comestível. Correu o dedo pelo teto e depois o enfiou na boca. Até hoje não sei o que achar desse episódio. Ele disse que a caverna toda tinha gosto de frango.
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Sobre Blake e Wordsworth — 07 de abril de 2020
Este é um trecho que pesquei das anotações que fiz enquanto estava escrevendo meu mestrado. Não entrou na minha dissertação, ficou solto e esquecido e eu não o desenvolvi em direção nenhuma. A quarentena me fez revirar coisas antigas, esta foi uma delas. 

O que é clareza na poesia? Essa pergunta, no caso do Wordsworth, arrasta consigo um outro pressuposto essencial: a poesia tem que ser útil. Se é preciso falar de modo claro, é porque existe naquele poema uma mensagem que será útil para quem a receber – o poeta que a emite cumpre uma função, uma função importante, segundo Wordsworth. Seus livros precisam chegar aos leitores com o mínimo de barreiras. A confusão é uma barreira? Não sei. Depende. É muito difícil dizer o que se transmite na poesia. Vou citar dois exemplos. O primeiro, de William Blake: 
“What is it men in women do require?
The lineaments of Gratified Desire.
What is it women do in men require?
The lineaments of Gratified Desire.” 
O segundo, são os versos finais do "Prelúdio", de Wordsworth: 
What we have loved
Others will love, and we may teach them how –
Instruct them how the mind of man becomes
A thousand times more beautiful than the earth
On which he dwells, above this frame of things
(Which, mid all revolutions in the hopes
and fears of men, does still remain unchanged)
In beauty exalted, as it is itself
Of substance and of fabric more divine. 
As quatro frases que compõem o poema de Blake não têm complicações de ordem sintática: não há orações subordinadas nem coordenadas; apesar de o verbo estar no final da frase, isso não provoca nenhuma grande dificuldade de leitura, apenas reproduz um estilo arcaicizante ou oracular. Já o segundo trecho, o de Wordsworth, é composto de apenas uma oração, mas que precisa de nove linhas para se desenvolver e chegar a um ponto final; leva um travessão, um parênteses, uma metáfora ("this frame of things [the earth]"), uma comparação (more beautiful), mudanças de sujeito a meio-caminho da oração (de we para mind of man para frame of things, representada pelo pronome which, de volta para mind of man, representada agora por it). 
Descrevendo assim, seria de se imaginar que o primeiro trecho é simples; o segundo, complicado. Ambos são compostos em versos decassílabos. O primeiro, porém, segue a estrutura de pergunta e resposta típica dos epigramas rimados dos autores espertos, como Alexander Pope. Ao contrário de um epigrama de Pope, este poeminha de Blake é impressionantemente desprovido de qualquer "wit", justamente o que seria mais esperado pelo gênero. E apesar de seu título ser “A question answered”, a resposta que ele nos dá não é muito mais do que um formigamento interior de que algo se aprendeu, mas não se sabe bem o quê. Daí que, sem "wit" evidente, ele cumpra uma espécie de função-wit na sua mistura de obviedade (a resposta sendo a mesma, repetida) e estranheza (o quê, afinal, são os "lineaments of gratified desire"?). 
Já os decassílabos de Wordsworth não ressoam à maneira de uma poesia intelectual (como era o epigrama no século 18, o século de Pope). É inclusive estranho perceber que ambos, Blake e Wordsworth, estejam usando o mesmo metro — naquele, parecia tão fixo, com as palavras da pergunta batendo um ritmo professoral (ta-ta-ta-ta…) que deságua nas três palavras mais alongadas, liquefeitas (lineaments, gratified, desire) da resposta. A pergunta vem com uma cadência decidida, seca. A resposta soa como outra língua, palavras decoradas por um estudante de latim. Mas os versos de Wordsworth são uma caminhada no campo (é a imagem que nos vem — era assim que Wordsworth, muitas vezes, escrevia, caderninho à mão), cheia de enjambements e mudanças de tônica de um verso para outro. As caminhadas no campo têm isso por princípio: elas não têm um lugar fixo para parar. O seu modo de desenvolvimento racional, isto é, o jeito que encadeia uma ideia e a leva até sua conclusão, é o da prosa. Diferentemente do epigrama de Blake (ou de um de Pope), este é um gênero explicativo. Mas o que é mais simples, ou mais claro – a explicação ou a perplexidade? 
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Fim do mundo — 21 de março de 2020
Escrevi este texto no começo do ano passado, numa época em que estava lendo muitas horror news sobre aquecimento global. Ele ficou guardado até agora, porque eu e a Deborah Salles, minha melhor amiga e gênia, queremos transformá-lo em parte de um projeto nosso feito em conjunto. Esse projeto continua sendo planejado, mas depois de quase uma semana de quarentena, me peguei pensando neste texto e quis que ele pudesse circular pelo mundo (já que a gente, neste momento, não pode).

Se você está lendo isto, é porque já se passou muito tempo, e o mundo onde eu existia acabou. Tenho 27 anos e pretendia chegar até os cem, desde que meus amigos e outras pessoas interessantes topassem chegar também. Mas em algum momento no meio do caminho, morremos todos de calor ou de sede ou de fome ou dentro de um furacão ou engolidos por uma nuvem preta de fumaça ou uma onda gigante do mar. Se você está lendo isto, é porque vem de uma outra espécie, talvez visitante de outro planeta, ou uma criatura inesperada que evoluiu. Gostaria de saber que cara você tem.
Este é o registro que deixo para que você possa nos conhecer. Somos humanos, gostamos das coisas e do mundo, e teríamos muito para dizer, se você pudesse nos ouvir. Teríamos muito para mostrar, começando pelas nossas rotinas mais simples. Comer, dormir e bocejar, por exemplo — que é quando abrimos a boca (fica no meio da cara) e deixamos entrar muito ar. Ventilamo-nos por dentro. Esticamos nossos músculos de manhã, e os ossos às vezes fazem crec. Uma palavra que é boa de falar na nossa língua é “crocante”. Posso falar de outras coisas boas sobre nós, a começar pelas mais simples, como uma lista do que gostamos de comer. Quais você acharia que são?
a) Cascalho molhado
Poção venenosa
Carvão ativado
Miolo da rosa

b) Telescópio
Mesozoico
Paranoico
Retumbante

c) Cabelos
Pelos
Espelhos
São todas palavras humanas, mas não, não comemos nenhuma dessas. O que nós comemos na verdade são alfaces, aspargos, rúculas e morangos. E pepinos, tomates, toranjas, cebolas, ovelhas, coelhos, carneiros, ameixas, mirtilos, castanhas, coentros, bananas e rãs. E também acerolas, alheiras, cachorros, galinhas, poejo, tomilho, macacos, tucanos, cominho, joelhos, amora, moranga, moringa, moela, marmelo, farinha, farelo, farofa. Cogumelos, azeites, figos e damascos e tâmaras; abacaxi, cardamomo, leite de coco e o coco inteiro, com exceção da casca. A parte crocante demais. Arroz de todos os jeitos, batatas, sardinhas, lentilhas, geleia, fermento, e uma coisa chamada bombom. Você consegue acreditar num nome desses? Comemos vacas, comemos cobras, comemos barbatanas de tubarão. E baleias, e focas e a suave água-marinha, e gatos, a depender.
Uma coisa muito boa de se fazer quando se é humano é se coçar.
Eu gostaria de escrever este relato para que você soubesse mais sobre nós. Comemos com as mãos, e não com os pés, usamos talheres de prata, de plástico ou pauzinhos de madeira. Somos ou já fomos muito inventivos. 
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25 de janeiro de 2020
Eu, que tenho dificuldade para perceber as coisas do mundo quando não vêm até mim por escrito, e que tropeço e caio nos buracos na minha frente quando não vejo antes um sinal dizendo “buraco na via”, às vezes tenho a sensação de que descubro coisas. Daqui de dentro do buraco, descubro; lendo, descubro — só assim descubro — um detalhezinho de vida que eu não conhecia, e que existe verdadeiramente. Existe ou já existiu, tanto faz o ontem e o hoje para quem tende tanto à abstração. Volto: revelo coisinhas. São elas, pequenininhas, que me fazem olhar para fora. Minha alegria é essa: um mundo feito de detalhes. 
E vou fazendo coleções mentais desses detalhes. Esqueço a maior parte, guardo um ou outro por capricho. 
Tem um tempo que venho topando com fatos particulares que agora se combinam na minha cabeça. Se eu tiver que dar um nome a esse conjunto, diria que é de roupas ridículas e revoluções.
Ontem fui parar num artigo de Wikipedia sobre Incroyables et Merveilleuses, [Os] incríveis e [as] maravilhosas. Foram aristocratas* que, logo depois da Revolução Francesa,** passados os anos do Terror e das guilhotinas, resolveram que, dali em diante, só fariam coisas no mundo quando elas fossem extravagantes, vergonhosas, sem sentido. Ter a própria consciência narrada por uma voz de teatro. Eu também tenho, às vezes.
Incroyables et merveilleuses, de vez em quando, Incoyables et meveilleuses, para não terem que pronunciar o “r” da revolução, porque ele raspa na garganta. Pensei agora rapidinho: gente rica nem garganta tem. Lembrei da bisavó de uma amiga, que não tem nada a ver com isso, mas que tinha vergonha de sentar em público porque não queria que as pessoas soubessem que ela tinha bunda.
Volto: esses aristocratas franceses se vestiam com roupas chamativas, bobas. Vestidos que deixavam a bunda à mostra, por exemplo. Sentada e de pé:
Eles faziam grandes festas de salão, “bals des victimes”, onde os aristocratas em luto pelos parentes guilhotinados dançavam vestidos inteiros de preto. Cumprimentavam-se com um gesto de cabeça que imitava os movimentos da decapitação. Imaginem que estranho. Num desses salões, no nono arrondissement de Paris, à direita do Sena, só era permitida a entrada aos filhos órfãos de pais guilhotinados. Vocês também já devem ter tido essa vontade, esse impulso enérgico de sair de casa, ver as luzes, misturar-se, só porque estavam tristes, ou talvez porque se sentiam profundamente sozinhos e profundamente inquietos. E então permanecer em meio às pessoas, insistir, continuar triste mas também com a sensação de uma outra coisa crescendo dentro de vocês, uma vontade de correr o mundo, de levantar as portas fundas dos porões para que a criatura submersa saia, descubra os dias, para que ela os leve para bem longe daqui e deste lugar onde tudo já está tão desgastado. A criatura nunca dorme de verdade, só descansa e finge. Mas então ela sai, sem precisar farejar o caminho, porque pouco importa para onde se vai quando tudo o que se quer é ir. As ruas estão escuras, mas ela sabe que em algum momento vai amanhecer e, finalmente, à luz do sol, todos vão saber que ela existe. Enorme, ela está lá, ocupando as ruas da cidade, crescendo até transbordar pelas esquinas, inundar as calçadas. Penetra as casas, as lojas; os armários de madeira boiam na superfície de suas ondas, os postes de luz faíscam. Tudo se deteriora em suas águas, as matérias apodrecem, incham e depois murcham quando a maré baixa. E tudo sente também, sente verdadeiramente dentro de si o desejo, a tendência a mudar de estado, transformar-se; todas as coisas um dia acordam, tirando o que nunca dorme. 
Mas a festa dos órfãos, isso é outra coisa, tem alguma qualidade além de tudo isso — não sei se conhecemos o que é. Fechem os olhos para imaginar. Não acredito que algum de nós já tenha feito parte de um grupo como esse, com tanta gente assim reunida, convocada nominalmente por suas tristezas. Perder o pai e a mãe em praça pública, em nome de alguma coisa alheia. Roupas ridículas. Um ou outro menino saiu da festa dos órfãos sem saber o que tinha acontecido com seus sapatos. Perderam-se pela noite.
Os predecessores espirituais dos Incroyables talvez tenham sido uns homens ingleses que, poucas décadas antes da Revolução na França, receberam o nome de Macaroni. Não que tivessem vivido uma revolução como aquela. Mas eram ricos também, jovens também, enfeitados também. Tinham esse nome porque passavam temporadas na Europa continental e, quando voltavam à Inglaterra, insistiam nos hábitos que tinham aprendido por lá — como o de comer comida italiana, por exemplo.
“Existe um tipo de animal, nem macho nem fêmea, coisa de gênero neutro, que tem, recentemente [1770] aparecido em meio a nós. É algo que se chama Macaroni. Fala sem dizer nada, sorri sem alegria, come sem apetite, cavalga sem vigor, ama sem paixão.” 
Eram “he-she things”, dizia um outro texto da época, inconformado. Um Macaroni conhecido, Captain Jones, preso por sodomia, foi também o responsável pela popularização dos fogos de artifício e da patinação artística no gelo.
Outros fatos da minha coleção mental, que agora começa a ficar mais rarefeita: marinheiros da Inglaterra que se despediam gritando OLIVE OIL uns aos outros, pela proximidade do som com "Au revoir". Gosto de pensar nesses homens ensolarados gritando, e mais ainda de pensar nos portos que os acolhiam.
E outro: John “Walking” Stewart, o revolucionário inglês e, depois, antirrevolucionário e, depois, pós-revolucionário, era-de-aquário, viajante do mundo inteiro e figura que influenciou os pensadores, poetas, gente curiosa e criativa de todo tipo que existia naquela Europa de fins de século 18: tinha quase dois metros de altura e se vestia inteiro de branco, coberto com as quinquilharias prateadas de um general de guerra armênio. Imagino o barulhinho de chocalho que ele devia fazer, descendo pelas ruas inglesas. Sereno, meditativo, atravessando avenidas e cruzando as esquinas, cheio de ideias, cheio de tantas coisas insuspeitas dentro da cabeça.
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* De ambos os gêneros, aristocratas e aristocratos.
** Sobre a Revolução Francesa, abriria uma outra aba mental de coleçõezinhas. Essa se chama “As revoluções e os nomes de bebês”. Alguns dos que foram registrados naquela época: “Betterave” (Beterraba), “Crainte” (Medo), “Droit de l’Homme Tricolor” (Direito do homem tricolor), “La Loi” (A lei; esse é bom de falar em voz alta, La-Luá), “Racine de la Liberté” (Raiz da liberdade — chapei), “Va de Bon Coeur pour la République” (Vá de boa vontade pela república).
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18 de dezembro, 2019

Numa animação de 1921, Winsor Mccay desenha um casal de centauros se conhecendo. Eles fazem um bebê-centauro, que aparece por um bom tempo em cena fazendo estripulias. Não tem nenhuma necessidade, não acrescenta nada à história, mas parece que o Winsor Mccay queria ter um personagem que pudesse fazer coisas interessantes, coisas boas de olhar, então criou o bebê. Só por isso, um bebê.
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Li uma crítica de um livro onde se fazia uma comparação interessante: dizia que ler aquela prosa, que não se propõe a nada além de narrar a própria mente, é como passar na frente de pessoas praticando taichi num parque. A imagem é boa, e me pega, não pelos motivos que a autora da crítica tinha em mente. Mas me pega de um jeito torto e pessoal, em primeiro lugar, porque eu sou uma dessas pessoas que praticam taichi em parques e porque, segundo, tenho pensado cada vez mais em como praticar taichi se parece com ler livros: são duas formas de se ensinar a olhar para si mesmo e descobrir, naquilo que é secreto e particular, o mais universal, e no que já se conhecia, novos e mais novos campos de tensão. Quase crocantes de tão frescos. Um verso como o de Wordsworth, “In that sweet mood when pleasant thoughts bring sad thoughts to the mind” — sweet mood/pleasant thoughts/bring sad thoughts —, isso é um correlato, no taichi, de aprender a prestar atenção em si mesmo com tanta precisão, até começar a sentir suas articulações se abrindo por dentro. Articulações se abrindo, sutilmente, maravilhosamente. Estou agora no meio do capítulo sobre como é soltar o quadril direito e, em seguida, o esquerdo. Girar a cabeça do fêmur, e nada além dela. Perceber a respiração acontecendo nas costas, na nuca, nos ombros. 
*
Eu ainda sou completamente feliz. Chego em casa todos os dias, cansada, apoio minhas mãos no balcão da cozinha e olho em volta. Pergunto qual é o sentido de tudo isso, e lembro: amanhã o sol se levanta, e depois, e depois. As árvores na rua continuam me dizendo quem eu sou, quem eu fui. Passo por elas todos os dias no meu caminho, e o metrô passa por baixo dos meus pés e me deixa elétrica. Lavo a louça. Coleciono pastas de dente do mundo inteiro e imagino como deve ser parar diante do espelho e se observar escovando os dentes na China. Enquanto isso, sigo por aqui, me olhando no espelho, e o que eu vejo é uma pessoa na beirada do balcão da vida adulta, mãos apoiadas e um caminho sem volta pela frente. Farejo a vida para identificar meus amigos. Gosto dos outros adultos que estão soltos por aí. Há quem se surpreenda com a ideia de que crianças pequenas ou animaizinhos já tenham personalidade própria. Para mim, o mais inesperado é descobrir isso nos adultos. Eu até pouco tempo atrás não sabia que eles tinham personalidade, achava que só tinham problemas.
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E se estando aqui sozinha, eu imaginasse agora que não estou? Eu veria você entrando pela porta, iluminando minha casa com sua luz, porque minha porta é outra porta, é a entrada de uma casa muito antiga, adormecida, e eu estou no escuro e você veio. Eu te diria sim, obrigada, e todas as noites você me contaria a mesma história de como você chegou até mim, me encontrou, e me tirou do lugar onde eu estava, que na minha cabeça parecia um deserto, cheio de pedras que eu não sabia serem preciosas. Você me levaria para viver numa outra casa, numa nova vida, e as ideias que eu teria me fariam esquecer das ideias que tenho agora, porque as ideias que eu tenho agora não me encaminham para minha nova vida, uma vida com você — e depois que algo aconteceu, nós só lembramos dos elos que engataram a corrente correta, específica para chegar até aqui. Enquanto algo ainda está acontecendo, pensamos no processo por mil ângulos diferentes, todos empilhados sobre o acontecimento e perigando cair. Só caem quando o que tem que acontecer acontece, e ninguém nem ouve o barulho dos outros copos quebrando. Esqueço das minhas ideias. Tudo o que eu já pensei e que não me levou a lugar nenhum ficou apagado, e não sei onde foi parar. Você não saberia disso, e eu não saberia te explicar. Mas você veio, e eu já não tenho mais qualquer dificuldade. Você me perguntaria o que eu gostaria de fazer, e eu te diria que o que eu mais quero da vida é tudo, e que isso me confunde um pouco a cabeça. Você pegaria minha cabeça com as mãos para que ela se contivesse, e falaria: vamos-por-partes. Eu responderia então que quero ser caixeiro-viajante, para conhecer o mundo e agir como alguém muito antigo. Agir como quem já nem existe mais. E você me perguntaria que tipo de coisas eu venderia como caixeiro-viajante e eu ficaria triste, porque não teria pensado nisso, e quando pensava em ser caixeiro-viajante era só para viajar de trem e para poder usar sapatos engraxados e ter um sonho. Tudo bem, você ainda tem outras opções pela frente — você me diz —, e você deitaria minha cabeça no seu colo e mexeria suas mãos na frente dos meus olhos e, com a luz passando através dos seus dedos, e as sombras caindo em mim, mostraria: olha, os seus sonhos aqui, aqui.
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